Águas paradas movem o Tâmega?

No vale, em breve dividido, ninguém sabe o que esperar das novas barragens

De olhos postos no rio

A 6 km do centro de Ribeira de Pena, as barragens são o tema de conversa.

Uma placa na estrada principal indica o caminho para a aldeia de Viela, aninhada junto ao rio Tâmega. Nesta localidade da freguesia de Santa Marinha, em Ribeira de Pena, o chilrear dos pássaros mistura-se com o alvoroço do outro lado da margem. O som dos motores dos camiões carregados de materiais de construção junta-se ao ruído incessante das condutas de ventilação, rompendo com o habitual sossego do campo.

Ainda nem é hora do almoço e “já houve dois rebentamentos”. Quem o diz é José Fernandes. A vista da varanda da sua casa, a poucos metros do rio, começou a mudar há dois anos, quando se iniciou a construção do túnel que ligará as barragens de Daivões e Gouvães. “Tem sido um caos viver aqui”, queixa-se. O barulho das obras, sem pausas, não deixa ninguém dormir. Há uns meses, uma das explosões provocou uma fissura no chão da sua cozinha, conta o homem de 52 anos.

Da Rua Principal para baixo, desaparecerá tudo. José vê-se obrigado a deixar os terrenos e “uma vida para trás”. Comprou o centeio, mas já nem o plantou. “Deitei-o aos porcos”, afirma. Apesar de ter passado 16 anos na Suíça, foi em Viela que nasceu e criou raízes. As duas casas, que comprou há 30 anos, estão também no perímetro de segurança da barragem do Alto Tâmega, a montante. Assim, ele, a mulher e a filha de 15 anos terão de fazer as malas. No total, fala noutras 15 casas da aldeia que ficarão submersas.

As obras deixam toda a gente curiosa. De costas voltadas para a antiga escola primária, que também será alagada, está Agostinho de Almeida, de 47 anos. Abrigado pelo guarda-chuva, contempla o outro lado da margem. Não tem o mesmo problema que o primo José: está emigrado na Bélgica e a sua casa em Viela permanecerá intacta.

“As casas que ficam na parte de cima da atual estrada mantêm-se”, explica Adelaide Carvalho. A secretária da Junta de Freguesia de Santa Marinha não esconde que as obras estão a afetar a vida das populações. “No verão, era uma poeira, e há lugares onde não podem ter uma janela aberta”, diz.

A capela, junto à casa de Rosa e Isabel Maria Fernandes, também está a salvo. Mãe e filha, não precisam de se preocupar com mudanças, mas já tiveram alguns estragos na casa.

Rosa Maria Fernandes, de 80 anos, relata que “consoante dava o fogo, a janela fazia trac trac trac”. Conta que foi muito difícil habituarem-se ao barulho das obras. “Uma vez estávamos as duas na lareira e houve um estrondo, até demos um grito”, recorda.

Mas se reparar as janelas é fácil, quando se fala em terrenos a história é outra. Isabel lembra que não vai poder nem “plantar umas couves” nos campos que foram trabalhados pelo seu pai durante anos, que ficarão inundados. “Vamos vender porque somos obrigadas”, remata Rosa Maria.






A ideia era antiga. No rio quase selvagem, que separa Minho e Trás-os-Montes, ganha forma um dos maiores complexos de barragens que a Europa viu nos últimos 25 anos. Entre as promessas de desenvolvimento e o perigo dos impactos ambientais, o Tâmega continua a transformar-se numa ”cascata”.

O Sistema Eletroprodutor do Tâmega, um investimento de 1500 milhões de euros da espanhola Iberdrola, é um projeto de avanços e recuos. As obras, que entram agora na fase mais intensa, só estarão concluídas daqui a cinco anos, mas já se sentem os efeitos.

Unindo Chaves a Amarante, o rio de 145km desagua nas águas do Douro.

A balança do Tâmega

Ganha a restauração, perdem os desportos aquáticos.

Ao longo da estrada nacional que liga Viela ao centro de Santa Marinha, vêem-se pessoas à entrada dos estabelecimentos. Adelaide Carvalho está, nessa tarde, sozinha na Junta de Freguesia. O presidente, Domingos Teixeira, não pode, tal como ela, dedicar-se “nem a meio tempo” ao cargo. A rececionista está de férias.

A construção do Sistema Eletroprodutor do Tâmega (SET) trouxe uma nova dinâmica ao concelho. Há “camiões e camiões”, algo pouco habitual para a população, mas “todos os restaurantes estão cheios ao meio-dia”, confirma Adelaide.

Dos 13 500 postos de trabalho (3 500 diretos e 10 000 indiretos) prometidos pela Iberdrola, empresa concessionária do projeto, já estão no terreno 1 500. Nos próximos dois anos, este número deverá aumentar com o período mais intenso de construção. Adelaide Carvalho acredita que, em Ribeira de Pena, “não há desemprego”.

A funcionária da Junta de Freguesia de Santa Marinha é a favor das barragens, considerando-as “um dos motores para o desenvolvimento da região”. Pedro Pinto, consultor da Iberdrola, defende que o objetivo da hidroelétrica é exatamente esse, o de “promover o desenvolvimento económico, social e cultural da bacia do Tâmega”.

A multinacional espanhola destinou, por isso, 50 milhões de euros para compensar os municípios envolvidos no projeto – Ribeira de Pena, Vila Pouca de Aguiar, Cabeceiras de Basto, Boticas, Chaves, Valpaços e Montalegre. O  investimento já deu alguns frutos, como a criação da Casa Municipal do Produtor, localizada no centro da vila de Ribeira de Pena.

Contudo, nem todos “compram” este discurso. “É uma grande treta para enganar as pessoas antes de construir as barragens”, acusa João Branco. O presidente da associação ambientalista Quercus justifica dizendo que as regiões onde foram construídas barragens continuam a ser as mais deprimidas do país. Dá o exemplo de Carrazeda de Ansiães, onde a recém-instalada barragem do Tua não impediu o concelho de ser “um dos que tem piorado mais os seus indicadores socioeconómicos”.

O futuro do turismo, onde Adelaide Carvalho deposita toda a sua esperança para o desenvolvimento económico de Ribeira de Pena, é imprevisível. A Iberdrola, por sua vez, comprometeu-se a apoiar as atividades turísticas logo que as obras estejam terminadas.

Facilitar algumas atividades turísticas, mas dificultar outras. A centenária Ponte de Arame, que atravessa o Tâmega e liga a freguesia de Salvador à de Santo Aleixo, será submersa ou translocada. A ponte faz parte do Roteiro Camiliano e “costuma ser um ex-líbris de Ribeira de Pena para o turismo”, denota Adelaide.

Mas as três barragens deixarão marcas no curso de água que, segundo o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), é um dos “últimos rios livres” do país. Segundo o diretor da Quercus, a transformação do rio em “dois grandes lagos artificiais de água choca” põe em risco a “grande economia” ligada ao Tâmega. A prática de desportos aquáticos, como a canoagem, envolve “muita gente” e será afetada pela estagnação das águas do rio. A submersão da Pista de Pesca Desportiva de Cavez, em Cabeceiras de Basto, é outro dos impactos negativos.

A própria pesca das espécies autóctones – como a truta e a enguia – encontra-se ameaçada pelas barragens. Quando estiverem construídas, estas tornar-se-ão um obstáculo para os peixes migradores, que João Branco diz ser já o “grupo mais ameaçado de fauna que temos no país”.

Mas a alteração do ecossistema não acontece só na água. Em causa pode estar também “uma extinção a curto-prazo” do lobo ibérico no Marão-Alvão, reconhece o presidente da Quercus. A barragem de Gouvães está a ser construída dentro da área da Rede Natura 2000 e vai provocar a inundação de várias pastagens que fazem parte da zona de reprodução do lobo. Para além disso, as outras duas barragens criarão uma “barreira física que torna o rio intransponível para o lobo”, o que, segundo o também engenheiro florestal, afetará a troca de indivíduos com outras alcateias, como as do Gerês, essencial para a sobrevivência do grupo.

É difícil perceber se esta será a “gota de água” para a extinção do lobo ibérico no Marão-Alvão, já muito ameaçado pela intervenção humana no seu habitat. Ana Brazão aproveita para apontar a imprecisão do Estudo de Impacte Ambiental promovido pela Iberdrola, lançado no início de 2010 e realizado em apenas um ano. “Os estudos foram feitos em cima do joelho, num ano não é possível perceber quais são as dinâmicas ecossistémicas ou socioeconómicas dos locais”, acusa, afirmando que as obras avançaram com base em referências bibliográficas desatualizadas.

A Quercus chegou mesmo a pedir, em 2016, um novo estudo, que não se concretizou porque, diz João Branco, “ninguém quer enfrentar a Iberdrola”. Nem mesmo o governo. “Houve partidos que prometeram, na campanha eleitoral, que se iam opôr [Bloco de Esquerda e Os Verdes] e, agora que fazem parte do governo, não dizem nada sobre o assunto”, remata.

Pedro Pinto, da Iberdrola, garante a existência de “múltiplas medidas de minimização, compensação e reposições” adequadas para marginalizar os danos ambientais provocados pela construção e exploração do SET.

Uma barragem inútil?

O Sistema Eletroprodutor do Tâmega não ficou imune às críticas ao Plano Nacional de Barragens

O Programa Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroelétrico (PNBEPH), que inclui o Sistema Eletroprodutor do Tâmega, nasceu em 2007, durante o governo de José Sócrates. Há dez anos, o documento tinha como meta “atingir uma capacidade instalada hidroeléctrica nacional superior a 7000 MW”. Em 2016, no início da construção das três novas barragens, já estavam instalados, e em serviço, 7 003 MW.

A Iberdrola justifica a ainda relevância do projeto com a sua capacidade de aumentar a independência energética nacional, uma vez que o país diminuirá a importação de combustíveis fósseis, e a redução de emissões de gases promotores de efeito estufa. Este é um argumento que Ana Brazão diz conhecer bem. “A grande dependência de combustíveis fósseis não provém da produção de eletricidade, mas sobretudo dos transportes”, contraria. Chama também a atenção para o contributo, que afirma não ter sido avaliado, da própria construção do sistema de barragens no consumo de energias fósseis.

A quantidade de energia que o SET vai produzir também levanta questões. Pedro Pinto apresenta este investimento como responsável pela produção de 4% do consumo elétrico do país, ao passo que o GEOTA aponta para uma energia produzida equivalente a apenas 0,6% do consumo nacional. Este segundo valor inclui também a produção estimada da barragem do Fridão, atualmente suspensa. “As nossas contas, ao contrário das da Iberdrola, estão publicadas. Não fazemos ideia com que pressuposto é que calcularam esse valor”, explica. Afirma também que as contas da associação ambientalista foram “partilhadas com todos os agentes decisores e nunca foram refutadas”.

Uma possível explicação para esta disparidade é o facto de a Iberdrola invocar a produção bruta e o GEOTA a produção líquida, ou seja, a energia que realmente vai ser injetada na rede e consumida.

Foi por considerarem o SET “inútil” que o GEOTA se começou a movimentar no terreno. Em 2015, percorreram os municípios envolvidos com a iniciativa “Caravana pelo Tâmega” onde davam a conhecer às populações o “lado mau de uma barragem”. Em 2017, voltaram à estrada com o mesmo mote, aproveitando também para promover o movimento “Vota Tâmega”.

A Quercus também tentou, sem sucesso, travar este empreendimento. Em 2011, apresentou uma queixa formal à Comissão Europeia. A resposta tardou, chegando seis anos depois. “A queixa foi arquivada, mas também não nos admira porque a Comissão Europeia é um organismo que serve para proteger as grandes empresas privadas”, atira João Branco.

Quem ganha com a "cascata" do Tâmega?

Em cima da mesa estão as "rendas", os interesses do município e dos habitantes.

Se os números avançados pelo GEOTA traduzem a realidade e a exploração do sistema de barragens não é rentável, porque não desistiu a Iberdrola do projeto? João Branco tem a resposta na ponta da língua. “Se não fossem as rendas, a Iberdrola não construía as barragens”, diz.

As “rendas” de que fala o presidente da Quercus são o subsídio anual de 21,6 milhões de euros que o governo de Sócrates se comprometeu a pagar às concessionárias das barragens incluídas no PNBEPH durante a primeira década, independentemente da quantidade de energia produzida. “As barragens vão ser pagas pelos consumidores portugueses e o Estado fica a pagar uma renda à Iberdrola”, expõe João Branco.

De volta a Viela, Isabel Fernandes considera que “a favor da barragem só estão aquelas pessoas que não vão perder nada”. A sua aldeia perde 80% da área.

Pedro Pinto afirma que o objetivo da Iberdrola é “conseguir encontrar soluções satisfatórias para todas as pessoas afetadas”. No entanto, o processo não está a ser fácil. “Aqui na aldeia, ainda só assinaram duas pessoas”, conta José Fernandes.

O presidente da Quercus elogia a posição dos moradores, dando o exemplo da barragem do Baixo Sabor. Nesse caso, diz, os valores propostos quadruplicaram para as pessoas que se mantiveram sem um acordo até poucos dias do fim do prazo das negociações.

A Quercus e o GEOTA acreditam que o projeto ainda pode ser revertido, mas já não tentam impedir a sua concretização. “Fazemos chegar a nossa posição, mas sabemos que o dossier do Sistema Eletroprodutor do Tâmega está encerrado pelo próprio governo”, esclarece Ana Brazão.

Em 2023, a “cascata do Tâmega” estará concluída. Dos 3 500 empregos diretos disponíveis no pico da obra, não restarão mais do que duas centenas. O futuro do Vale do Tâmega é incerto. Mas, enquanto ele não chega, há quem espere pela proposta de uma nova vida.

Ficha técnica

Ana Maria Dinis e Ana Rita Martins

Agradecimentos:

Filipa Guimarães e Pedro Pinto - Iberdrola

Ana Brazão e Pedro Santos - GEOTA

João Branco - Quercus

Adelaide Carvalho - Junta de Freguesia de Santa Marinha

José Fernandes

Agostinho de Almeida

Rosa Maria Fernandes

Isabel Maria Fernandes

Águas paradas movem o Tâmega?
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  3. A balança do Tâmega
  4. Uma barragem inútil?
  5. Quem ganha com a "cascata" do Tâmega?